Jacques, o Fatalista
Publicado Por
BORGES CARREIRA
Idioma
Português
Jacques, o Fatalista
Jair Bolsonaro, um fatalista do nosso tempo.
Sou um pequeno burguês, um pequeníssimo burguês aliás, e tenho medo às controvérsias. Embora elas sejam inevitáveis. Um pensamento desafia sempre o seu contrário para as quatro linhas do combate, e as unanimidades raro acontecem e nem sempre são desejáveis. É bom ter inimigos e o ideal é que os possamos respeitar e desejar ter sempre inimigos daqueles, com quem se possa ir tomar café e gritar com eles e chamar-lhes nomes feios.
A capa desta tradução pedia um fatalista. O retrato de Diderot que ilustra o site Magna Carta não era o indicado para aqui. Diderot não era fatalista, cria na liberdade. Pensei na Czarina Catarina a Grande, mas só por ser das primeiras leitoras desta obra destinada só a elites que a recebiam numa revista feita inteiramente à mão, ou seja, era manuscrita e não impressa. Mas não consta que a Czarina fosse fatalista. Poderia pôr o retrato de Espinosa, que parece ter sido fatalista. Mas se nem sequer o li!… Salazar parece que era fatalista também, mas só na questão da miséria do povo, que não era escondida nem camuflada. As pessoas eram pobres porque era assim o seu destino e não havia nada que nenhum governo pudesse fazer para lhes melhorar a sorte. Quanto às questões do poder e da manutenção do poder, aí já o ditador nada deixava ao acaso.
Então?
Pensei – terá de ser um fatalista do nosso tempo, e de preferência conhecido de todos os que lêem jornais. E a solução meteu-se-me pelos olhos dentro. Uma epidemia do mundo chega ao Brasil e o seu Presidente, inteiramente conformado com o destino, encolhe os ombros e diz “É a vida”. Como quem diz – para quê maçar-me a tomar medidas se quem estiver destinado a ser infectado vai ficar infectado, se quem está destinado a morrer vai morrer mesmo. Igualzinho ao capitão de Jacques – o que nos acontece de bom ou de mau está escrito lá em cima. Então, para quê mexer uma palha? Para quê gastar dinheiro em saúde quando esse dinheiro é melhor empregue na compra de armas, em que os fabricantes costumam ser generosos? Salvar, ajudar, curar, e ainda por cima quando é uma doença que vitima principalmente os mais fracos, os tais que não merecem viver, é pura estupidez e perda de tempo e dinheiro.
Esse o motivo de ter escolhido para a capa o retrato de Jair Bolsonaro, homem público. Jair Bolsonaro, um fatalista do nosso tempo. Só e exclusivamente por ser um fatalista do nosso tempo. Quanto ao resto, são questões que dizem respeito a um país independente e que só os brasileiros têm legitimidade para resolver, sem interferências de outros países. É por isso que não me meto onde não sou chamado e onde, aliás, nada mais poderia fazer do que juntar palavras minhas às palavras de outros. E o Brasil, tal como Portugal, o que menos precisa são de palavras.
Falemos um pouco do criador de Jacques, o nosso fatalista.
Diderot era um grande conhecedor dos meios religiosos, das intrigas e das discussões teológicas. E completamente hostil à religião. O que era uma atitude altamente perigosa. Viviam-se tempos de intolerância, como os de agora, com a única diferença de não se tratar de uma intolerância tão altamente científica e sistematizada como a actual. Era uma altura em que os caprichos e as protecções contavam muito, mas os castigos eram muito dolorosos; ao contrário de agora, em que caprichos e protecções continuam a contar muito, família, políticos e amigos continuam a entrar na distribuição dos benefícios, mas em que os castigos destinados aos que erram são muito mais brandos, não indo além, muitas vezes, da perda do emprego ou do posto de trabalho (a conhecida lista negra), só em casos contados se recorrendo ao assassínio. Nunca foi tão fácil dar-se cabo da vida de uma pessoa com o lançamento de uma simples suspeita. Nunca, desde o Santo Ofício e o Tribunal Revolucionário de Fouquier-Tinville, foi tão fácil condenar com base numa suspeita. Durante o Terror, acusar era guilhotinar. Basta agora lançar ao ar uma suspeita – fatalmente há-de cair em cima de alguém.
Deus nos livre das pessoas boas.
A moral e os bons costumes do século das luzes conservam a crueldade das guerras religiosas e da Santa Inquisição. Ainda em 1766, estava a Enciclopédia em fase de publicação, quando o cavaleiro de la Barre foi executado por impiedade e detenção de obras proibidas.
Também Diderot sentiu na pele as consequências da ousadia de pensar.
Já dizia o velho Lucky Luke – pensar faz acumular chumbo no organismo.
Imagine o pensamento como um anti-inflamatório muito forte, que elimina as dores num minuto. Só que um dos efeitos secundários possíveis é o de arranjar problemas. Mas, apesar de tudo, nunca deixe de pensar. Primeiro, porque é sinal de que não está morto. E depois, porque vai valer a pena. Vai ver que sim.
José Carlos Borges Carreira
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